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(1) RICOEUR, Paul.
Teoria da interpretação.
Lisboa: 70, 1976.

Apresentamos uma metodologia para a formação de leitores de anos iniciais baseada na hermenêutica defendida pelo filósofo francês Paul Ricoeur(1). A hermenêutica consiste na capacidade de compreender, de traduzir e de relacionar claramente os signos linguísticos, de maneira a revelar seus sentidos. Valendo-se de noções do existencialismo, da fenomenologia, do estruturalismo e da psicanálise, Ricoeur desenvolve um novo conceito hermenêutico, defendendo o texto como caminho ideal para a interioridade humana, através da interpretação.

Isso significa que ao lermos e interpretarmos uma história, estamos colocando a nossa experiência de mundo em diálogo com a experiência de mundo revelada pelo texto. Como resultado, alargamos nossa própria vivência, passando a nos conhecer um pouco melhor e, assim, aprimorar nossa visão da realidade. Afinal, quanto mais nos conhecemos, mais maduros nos tornamos, aumentando nossas chances de vencer os desafios que a vida nos reserva. Por isso, para o filósofo, a obra literária só tem sentido mediante a leitura, ou seja, mediante o confronto do mundo do texto com o mundo do leitor. Não lemos apenas um texto, mas, sobretudo, nos lemos nele.

Para defender sua posição, Ricoeur denomina a leitura de círculo hermenêutico, dividindo-o em três momentos: a compreensão do texto, a interpretação do texto e a apropriação do texto pelo leitor. O ato de ler pressupõe, então, três fases. Primeiro, compreendemos o que lemos, em seguida, interpretamos o que lemos e, finalmente, nos apropriamos do que lemos. é claro que não conseguimos conscientizar e separar cada uma dessas fases durante a leitura. Elas procedem simultaneamente. Porém, elas devem sempre ocorrer para que consigamos realmente vencer o círculo hermenêutico, tornando-nos donos de nossas próprias leituras. Só assim elas vão nos conduzir à descoberta de nossa própria identidade e da realidade que nos circunda, acarretando-nos o amadurecimento.

Vejamos, agora, cada um dos três momentos previstos pelo círculo hermenêutico ricoeuriano, a começar pela compreensão do texto pelo leitor. Compreender, segundo o filósofo, parte, inicialmente, de uma suposição. De posse de um livro, primeiramente, formulamos uma ideia sobre ele, movidos pelo título, pela ilustração da capa, pelo tema, entre outros adereços que nos fornecem pistas sobre o que vamos encontrar no seu interior. Ao ingressamos na leitura propriamente da obra, decodificando sua composição textual, ou seja, lendo-a, validamos ou não as suposições anteriormente feitas.

Quando, por exemplo, oferecemos o livro de imagem O mistério da página 19, de Juarez Machado, para os alunos, muitos acreditam estarem diante de uma narrativa de terror, onde haverá pelo menos um caso a ser solucionado, envolvendo morte, sangue e pavor. à medida que leem a obra, tal ideia inicial perde força, pois descobrem que o adjetivo mistério está relacionado à dificuldade de um escritor em dar continuidade ao seu processo criativo, fazendo vingar o livro que pretende finalizar. Dessa maneira, suposição e validação tornam-se, respectivamente, abordagens subjetiva e objetiva do texto. As ideias iniciais que criamos em torno do livro que pretendemos ler vão ou não ser validadas no decorrer da leitura, enquanto substituímos nossas primeiras impressões, subjetivas, pelos reais acontecimentos, objetivados no texto.

No entanto, a compreensão depende, antes de tudo, da condição de distanciamento entre obra e leitor. Para realmente compreendermos um texto, ele necessita estar livre de quem o escreveu. Não podemos condicionar a nossa leitura ao contexto de produção da obra ou ao estilo de vida do autor. O livro, depois de publicado, torna-se independente da época em que foi escrito e de quem o concebeu, merecendo novas interpretações por diferentes leitores de tempos e condições distintas. No caso da literatura infantil, não podemos esquecer a distância natural existente e imutável entre o autor adulto e o leitor criança. Essa distância necessita ser superada durante a criação da obra. Cabe, pois, ao escritor, através da adaptação, quebrar a assimetria que o separa de seu destinatário, oferecendo-lhe textos adequados à sua forma específica de apreender o mundo.

Só de posse de uma obra literária adaptada ao seu processo cognitivo o pequeno passa a se interessar pela leitura, apto, por conseguinte, a compreendê-la, de forma a transformar a suposição inicial que dela surge em sentido próprio, validando-a. Dessa forma, ele avança no ato de leitura, excedendo o primeiro momento da compreensão, como indica Ricoeur, para atingir o segundo estágio, da interpretação. O livro infantil tem que promover o diálogo com o leitor mirim para que ele possa não só compreender como interpretar o que lê. Se o texto não permite o diálogo, impondo ao leitor o pensamento adulto, ele jamais vai conseguir ser dono de sua leitura, de modo a cumprir o círculo hermenêutico.

O discurso monológico, próprio de uma só voz, a do narrador, quando dissipado, é substituído pelo diálogo entre narrador e leitor, permitindo o entrecruzamento dessas duas vozes, acrescidas de muitas outras a que o texto pode dar espaço. Toda obra literária, inclusive aquela destinada à infância, deve promover a reflexão através desse entrecruzamento de vozes, ou seja, através da interação do mundo do texto com o mundo do leitor. Ao interpretamos uma obra, após compreendê-la, relacionamos a nossa própria vivência com as vivências manifestadas pelo texto. Estabelecemos, assim, relações entre o mundo do texto, revelado pela sua composição, e o nosso próprio mundo, ampliando nossas descobertas e, portanto, enriquecendo nossa identidade.

Nessa possibilidade de autoconhecimento e conhecimento de mundo proporcionado pela literatura, dá-se, de acordo com Ricoeur, o terceiro e último momento do ato de leitura, a apropriação. Atualizamos o mundo revelado pelo texto numa nova situação que nos é própria, apropriando-nos do que lemos. Em outras palavras, recontextualizamos a obra literária de forma a nos tornarmos donos dela. Para tanto, durante esse processo, expomo-nos ao texto para dele receber novos conhecimentos, alargando nossa percepção da realidade circundante.

Compreendendo, interpretando e, finalmente, apropriando-nos do texto, vencemos o círculo hermenêutico ricoeuriano ao mesmo tempo em que ampliamos nossa própria identidade. é através dessa leitura reflexiva e voltada para a descoberta do eu que procuramos formar leitores nos anos iniciais. Nesse período, em especial a partir do segundo ano, a criança já tem condições de decodificar o código linguístico, pois se encontra inicializada na prática leitora e escrita. Porém, o seu pensamento é ainda organizado por meio de operações concretas, ou seja, pelo raciocínio causal, baseado na explicação por identificação.

(2) VIGOTSKI, L.S..
A formação social
da mente: o desenvolvimento
dos processos
psicológicos superiores.
6.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.

Entretanto, na visão do psicólogo russo L.S. Vigotski(2), a cognição humana está atrelada ao contexto social desde o nascimento. Desse modo, o desenvolvimento das habilidades torna-se um processo dialético formado por mecanismos elementares, de origem biológica, e por funções psicológicas superiores, de origem sociocultural. As fases do desenvolvimento infantil não devem, portanto, ser consideradas estanques, amarradas a uma faixa etária específica, pois as condições exteriores com as quais o ser humano interage podem ser bem distintas. Tal fato acarreta a premissa de que a criança, desde cedo, enquanto se desenvolve, aprende através da observação do meio, da interação e da manipulação com a realidade. Nesse sentido, Vigotski defende a inter-relação entre aprendizado e desenvolvimento, não havendo paralelismo entre eles, mas complementaridade.

Em âmbito escolar, o entrecruzamento de estímulos biológicos e socioculturais é intensificado pela ampliação e diversificação desses últimos. Por isso, a escola desempenha papel fundamental na conscientização, por parte do pequeno, de seus processos mentais. O aprendizado induz o tipo de percepção generalizante, ou seja, consciente, ao permitir o contato do aluno com conhecimentos já sistematizados. O aprender pode ser visto, nessa perspectiva, como um propulsor do desenvolvimento, o qual, segundo o psicólogo russo, apresenta-se sob dois níveis: real e potencial.

O nível de desenvolvimento real compreende a capacidade infantil de realizar ações por si mesmas. Tais ações estão, por conseguinte, amadurecidas. O nível de desenvolvimento potencial, ao contrário, é determinado pela competência mental de construir ativamente o conhecimento mediante a interação com outras pessoas. A distância entre o nível real e o nível potencial, como elucida Vigotski, resulta na zona de desenvolvimento proximal, que abarca aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação.

(3) VIGOTSKI. L.S..
La imaginacion y
el arte en la infancia.
Madrid: Akal, 1982.

A grande vantagem de levarmos em conta a zona de desenvolvimento proximal recai sobre a possibilidade de estimularmos o desenvolvimento mental e não mais somente resgatá-lo através do nível de desenvolvimento real. Consequentemente, o acúmulo de novas e diversificadas experiências denota a aceleração do desenvolvimento da imaginação infantil rumo à maturidade. Isso ocorre, porque, segundo Vigotski(3), há dois tipos de impulsos cerebrais. O primeiro, denominado reprodutivo, vincula-se diretamente à memória. Porém, esse impulso, sozinho, restringiria o homem a viver em um mundo não sujeito a mudanças, constantemente idêntico, o que não ocorre na realidade vigente. Por isso, nosso cérebro, ao lado de sua capacidade reprodutora, possui uma outra competência não menos importante, a criadora.

Nesse sentido, a capacidade criadora, baseada na imaginação, consiste em toda a realização humana capaz de gerar algo novo, fruto de uma necessidade própria do mundo exterior. Os objetos nada mais são que fantasias cristalizadas. Antes de existirem, foram imaginados por homens frente a determinadas situações inéditas provocadas pela interação com o meio. Dessa forma, imaginação e realidade não podem ser vistas separadas, mas, sim, unidas e complementares. Da experiência surgem motivações para a capacidade criadora se desenvolver e transformar o mundo real, o que implica afirmar ser a necessidade de adaptação à realidade o estímulo do ato criativo, próprio do exercício da imaginação, base de toda atividade criadora.

Desse modo, o aprendizado voltado para o nível de desenvolvimento potencial do aluno é que vai contribuir significativamente para a formação de indivíduos mais criativos e, por conseguinte, mais aptos a enfrentar os obstáculos que a vida pode apresentar. Entretanto, a ação estimuladora deve ser regida pelas necessidades infantis. No ambiente escolar, isso implica o cuidado que devemos ter em aplicar atividades que partam do interesse da criança. Mais especificamente no trabalho com o livro literário infantil, tal fato demanda cautela na escolha das obras e na sua aplicação. O nosso dever recai sobre a tarefa de envolver o pequeno com obras infantis literárias, jamais pedagógicas ou moralistas, permitindo-lhe o diálogo e, assim, o contato com novos mundos possíveis. Só assim conseguiremos despertar o gosto pela leitura, pois a literatura é sempre um convite a uma aventura inédita, fonte de descobertas e de satisfação, jamais de lições e de obrigações a serem cumpridas.

(4) CADEMARTORI, Ligia.
O que é literatura
infantil. 5.ed. São
Paulo: Brasiliense, 1991.

Por isso, defendemos a aproximação entre o livro e o brinquedo, entre os atos de ler e de brincar, instaurando e cultivando esse hábito no ambiente escolar. De acordo com Ligia Cademartori(4), a situação imaginária no brinquedo tem continuidade na experiência com histórias infantis. A capacidade criadora da criança é ativada pelo contato com a linguagem literária, de onde extrai novas experiências, vivenciadas no plano imaginário, porém também assimiladas no meio real.

(5) GARDNER. Howard.
As artes e o
desenvolvimento
humano. Porto
Alegre: Artmed,
1997.

A obra literária infantil e o brinquedo devem ser vistos, pois, como estímulos significativos para a evolução da imaginação e, consequentemente, do nível de desenvolvimento potencial do pequeno. Contudo, a literatura, de acordo com Howard Gardner(5), tende à integração e à organização da experiência de uma maneira mais abrangente que o brinquedo, pois é uma forma de brincar constantemente dirigida para um fim, a comunicação subjetiva. Por esse motivo, defende o brincar como um antecedente necessário para a participação da criança no processo estético. Assim, por intermédio do ludismo, o interesse do pequeno pela obra literária tem mais chances de ser despertado, pois ela passa a ser vista por ele como um convite para brincar, ou seja, como um convite para ingressar no universo da fantasia, onde a representação e a recriação ganham a vez.

Diante disso, um método de ensino de leitura da literatura infantil em sala de aula torna-se um caminho necessário a ser seguido. Assim como a obra destinada à criança, ele deve considerar suas especificidades, elegendo o elemento lúdico como instaurador de uma relação saudável entre o leitor e o livro e entre o aluno e o professor. Toda atividade humana, simples ou complexa, precisa estar estruturada a partir de uma metodologia que oriente as etapas a serem vencidas, a fim de que sejam obtidos os resultados esperados. Por isso, a concepção de um método pressupõe a organização de um caminho a ser percorrido para se alcançar determinado objetivo, constituindo-se em uma ação ordenada, previamente planejada.

(6) A descrição pormenorizada e a fundamentação
teórica completa do método encontram-se na
dissertação de mestrado Brincar de ler: um método
lúdico de ensino de leitura literária. EICHENBERG,
Renata Cavalcanti. Brincar de ler: um método
lúdico de ensino de leitura literária.
Porto Alegre: PUCRS, 2006. Dissertação
(Mestrado em Letras), Faculdade de Letras,
Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, 2006.

Sob essa perspectiva, criamos o método Brincar de ler(6), baseado na hermenêutica de Paul Ricoeur, focada no leitor mirim e, portanto, ligada ao ludismo. Como resultado, ele se divide em cinco etapas originadas a partir dos três momentos que compõem o círculo hermenêutico pregado pelo filósofo: compreensão, interpretação e apropriação do texto pelo leitor. A primeira etapa do método, denominada de Estímulo lúdico, compreende o momento de ingresso do aluno no universo fictício oferecido pelo livro literário. Realizamos jogos interpretativos e criativos de modo a promover descontração, interação e, finalmente, atração da atenção de todos para a leitura. Tal etapa corresponde ao momento inicial da compreensão, quando o leitor cria suposições sobre o texto a serem ou não validadas no decorrer da leitura. Mergulhar ludicamente no ambiente ficcional a ser proposto pelo livro literário transpõe o pequeno para uma nova representação do real, predispondo-o a ler e, assim, preparando-o para a verificação das suposições formadas.

A segunda etapa do método constitui o momento da Leitura propriamente dita, que pode se realizar em roda, em pequenos grupos, individual e silenciosa, de acordo com a técnica empregada. Nessa fase, as suposições elaboradas durante o Estímulo lúdico são experimentadas, validadas e expandidas pela criança que, dessa maneira, alcança a compreensão do texto, cumprindo o primeiro momento do círculo hermenêutico ricoeuriano. Enxergando o livro que tem em mãos como objeto de prazer, ela aumenta o seu interesse e a sua capacidade de interpretação.

Após essa etapa, ingressamos na Reflexão sobre a leitura, que corresponde ao segundo momento do círculo, ou seja, à interpretação. Nessa fase, comentamos, juntamente com os alunos, a obra lida, focando o tema central e sua relação direta ou não com o mundo real e as experiências individuais de cada um. O caráter descontraído dessa etapa, na qual o pequeno tem a liberdade de tecer ou não comentários a respeito, mantém a essência lúdica do método. Envolvido por uma espécie de conversa informal, regida ou não por brincadeiras, ele sente-se confortável para expor suas ideias com relação ao texto, intensificando o exercício interpretativo. De acordo com a teoria de Ricoeur, a reflexão sobre a leitura surge como maneira eficaz para o leitor não apenas compreender, mas interpretar o texto, pois esse momento se traduz num estímulo significativo para o estabelecimento, por parte da criança, de relações entre o mundo do texto e o seu próprio mundo.

A quarta etapa do método constitui a Atividade criativa, que representa o terceiro e último momento do círculo hermenêutico, a apropriação do texto pelo leitor. Partindo do tema da obra lida, convidamos os alunos a realizar tarefas de releitura da história, porém sempre mediante propostas lúdicas e criativas, geralmente textuais e individuais, o que não exclui atividades em grupos e que dispensem a escrita, regidas por outras técnicas. Sendo criativa, essa atividade dá seguimento ao caráter transformador da arte literária, pretendendo, antes de tudo, o amadurecimento do sujeito. Através, então, de atividades lúdicas e criativas, o presente método objetiva unir os atos de leitura e releitura, concebendo esse último como meio propulsor para a concretização do primeiro, como revelador dos processos internos de compreensão, interpretação e apropriação do texto. Criando em cima daquilo que compreendeu e interpretou, o aluno torna-se mais propício a assimilar significados próprios do texto lido, aumentando o conhecimento de si e da realidade que o envolve.

Finalmente, chegamos à quinta e última etapa do método, a do Desfecho lúdico, também relacionada ao momento da apropriação do texto pelo leitor, uma vez que complementa a Atividade criativa. Nessa fase, os alunos têm a oportunidade de divulgar e socializar seus trabalhos, ou seja, suas apropriações singulares dos sentidos do texto. Entretanto, no que tange ao público infantil, tal socialização deve ser concebida ludicamente, visando à interação saudável entre as crianças e à apreciação de suas criações de forma enriquecedora. Por isso, essa etapa é sempre realizada por meio de brincadeiras.

Ao brincar de ler, vencendo as cinco etapas previstas pelo método, a criança mescla constantemente fantasia e realidade, de maneira a descobrir sua própria identidade. Para ampliar e enriquecer tal descoberta, julgamos necessário aplicar a metodologia apresentada a partir de um eixo temático que enfatize o benefício da literatura de ampliar os horizontes de quem lê. Tal tema é, por seu turno, dividido em unidades temáticas contínuas e progressivas, voltadas para a descoberta de si e da realidade, quais sejam: identidade, segredos, desejos, gostos, problemas, medos, relações familiares, amizade, vida na escola e descoberta do mundo. As unidades seguem, pois, a ordem “de dentro para fora”, uma vez que, dessa forma, a criança, através da leitura literária, tem mais capacidade de decifrar e enfrentar o meio em que vive, garantindo, por conseguinte, maior compreensão de si mesma. à medida que brinca com obras que obedecem simbolicamente tal progressão temática, novos conhecimentos são livremente repensados e aplicados em sua vida em particular.